História da imigração – parte 1

 

Processos de migração, emigração e imigração de mão-de-obra pelo mundo inteiro já foram assunto de livros, filmes e novelas. A causa principal para tantas pessoas – milhões, em épocas diferentes e de lugares diversos – é sempre a mesma: buscar oportunidades de trabalho e melhores condições de vida, que não são oferecidas em seus países de origem. O resultado é que varia. Após lutas, dramas e conflitos, alguns terminam em fracasso, e outros em comoventes histórias de sucesso.

A história da imigração japonesa no Brasil é a história de uma saga que ainda não terminou, e de uma das experiências bem-sucedidas de integração mais improváveis que já ocorreram no conturbado século XX.

AS RAZÕES DO BRASIL, OS MOTIVOS DO JAPÃO.

É fato inconteste e amplamente divulgado que o navio Kasato Maru trouxe ao Brasil a primeira leva de imigrantes japoneses em 1908, iniciando de maneira efetiva o processo de imigração. Hoje em dia muitos têm – talvez em função de telenovelas – a limitada e distorcida imagem de que o fenômeno imigratório iniciou-se de modo ingênuo e romântico, com a chegada de povos exóticos que se aventuraram a “fazer a América” num país tropical, sensual e feliz.

O processo de imigração japonesa no Brasil iniciou-se bem antes de 1908 e em condições pouco românticas. O Kasato Maru foi apenas o primeiro resultado de anos de discussões, impasses e negociações entre Brasil e Japão. Para entender por que a imigração ocorreu, é preciso antes entender a situação sócio-político-econômica em que se encontravam ambos os países na segunda metade do século XIX.

No século XIX a economia do Brasil era agrícola e extremamente dependente da monocultura cafeeira. A cultura do café, por sua vez, dependia totalmente da mão-de-obra de escravos negros. Em 1888, atendendo a pressões políticas e movimentos humanitários, o governo brasileiro aboliu a escravidão no país, e os senhores do café tiveram que buscar soluções para a crescente falta de mão-de-obra. Antes mesmo da abolição da escravatura, o governo brasileiro tentou suprir a falta de trabalhadores com imigrantes europeus, mas as péssimas condições de trabalho e de vida dadas pelos patrões cafeicultores, acostumados a tratar de forma sub-humana sua mão-de-obra, além de desmotivar a vinda de imigrantes fez com que alguns países, como a França e a Itália, até impedissem durante alguns anos que seus cidadãos emigrassem para o Brasil. Assim, o governo brasileiro passou a cogitar trazer imigrantes da Ásia.

Não bastava, entretanto, trocar um tipo de imigrante por outro. No século XIX os brancos cristãos tinham um forte preconceito contra todo o resto da humanidade, e no Brasil os asiáticos eram tidos como “negros amarelos”. Em 1880, Oliveira Martins, escritor e político português, chegou a publicar argumentos contra a imigração asiática afirmando que “a perigosa tentação de ir buscar braços a outro viveiro de raças inferiores prolíficas embriaga muitos espíritos”, e concluía com “um Brasil europeu e não asiático, uma nação e não uma colônia, eis aí o seguro porvir da Antiga América portuguesa”. Entre julho e agosto de 1892, o jornal Correio Paulistano publicou artigos de Francisco Cepeda que se referia aos asiáticos com expressões como “se a escória da Europa não nos convém, menos nos convirá a da China e do Japão”, e que “o chim é bom, obediente, ganha muito pouco, trabalha muito, apanha quando é necessário, e quando tem saudades da pátria enforca-se ou vai embora”.

Em suma, imigrantes japoneses não eram desejados no Brasil. Porém é fato universal que quando se há necessidade de trabalhadores, governos e contratadores tornam-se mais convenientes e menos exigentes. Assim, embora desde 1880 já se cogitasse no Brasil a vinda de imigrantes japoneses, nenhuma ação concreta foi realizada neste sentido até 5 de novembro de 1895, quando Brasil e Japão assinaram um tratado pelo qual ambos os países passaram a desenvolver relações diplomáticas, e mesmo contrariando a opinião pública brasileira, abriram-se negociações para a vinda de imigrantes japoneses, que chegaria às vias de fato só a partir de 1908.

Mas o que fazia os japoneses se interessarem em ir para lugares distantes cuja população não era exatamente receptiva? O Japão da segunda metade do século XIX foi um país de dramáticas transformações. Durante dois séculos e meio o Japão esteve isolado do resto do mundo, sob o controle político dos xóguns da família Tokugawa. A sociedade japonesa era feudal e a economia estava estagnada num sistema agrário e dependente da cultura do arroz, enquanto as potências ocidentais, industrializadas e tecnologicamente avançadas, conquistavam colônias na África e Ásia. A partir de 1854, com navios americanos e ingleses exigindo com uso de canhões a abertura dos portos japoneses, o enfraquecido governo xogunal teve que ceder crescentes privilégios comerciais aos estrangeiros, o que gerou uma crise interna sem precedentes. Revoltas levaram a uma guerra civil, que culminou em 1868 com a vitória dos que queriam a restauração do poder ao imperador, e que defendiam a modernização rápida do Japão em moldes ocidentais. Era o início da Era Meiji (1868-1912).

Em 20 anos, a modernização Meiji revolucionou o país, propiciando oportunidades para a aristocracia, que ocupou importantes cargos na nova estrutura político-governamental, e para uma emergente burguesia que enriqueceu com os métodos industriais e financeiros importados do ocidente. Mas os benefícios do enriquecimento do país ficaram nas mãos de poucos, e fazer rapidamente do Japão uma potência bélica do mesmo nível que as potências ocidentais foi mais prioritário que necessidades sociais. A maior parte da população vivia no campo, onde impostos crescentes levavam mais e mais famílias à fome. Em busca de empregos e melhores condições de vida, muitos migraram do campo para as cidades, e outros migraram para o extremo norte, na ilha de Hokkaido, onde ainda haviam regiões a ser desbravadas. Entretanto, sendo o Japão um arquipélago superpovoado, as opções logo se escassearam e o governo japonês passou a promover a emigração como alternativa. A primeira emigração oficial ocorreu em 1883, quando japoneses foram para a Austrália para trabalhar na pesca de pérolas. A partir de 1885 o fluxo emigratório ganhou importância, quando japoneses passaram a ir para o então reino independente do Havaí. Nos anos subseqüentes, Canadá, Estados Unidos e Peru também se tornaram destino de milhares de trabalhadores nipônicos. Entre a pobreza em casa e um trabalho em terras estrangeiras – que por mais legalizado que fosse tinha obviamente muitos riscos – muitos japoneses preferiram a segunda opção.

CHEGAM OS JAPONESES

Houve o impacto do encontro de dois povos que se desconheciam. É sabido que popularmente os brasileiros tinham preconceito contra os japoneses – um preconceito todo fundado em mistificação, uma vez que até a vinda dos imigrantes não havia um convívio de fato entre brasileiros e japoneses.

Contrariando as expectativas negativas de como efetivamente eram os japoneses, J. Amândio Sobral, inspetor de imigrantes do Estado de São Paulo, redigiu um extenso artigo publicado no jornal Correio Paulistano de 26 de junho de 1908, descrevendo suas impressões sobre os imigrantes nipônicos. Sob efeito deste primeiro impacto, em seu texto Sobral expressa abertamente que os elogios que faz ao comportamento e à aparência dos japoneses não eram um exagero de sua parte, relatando que o grau de limpeza de “gente de humilde camada social do Japão” era qualificado como “inexcedível”, e que “houve em Santos quem afirmasse que o navio japonês apresentava em sua 3ª classe mais asseio e limpeza que qualquer transatlântico europeu de 1ª classe”. Ao deixarem o trem que os trouxe de Santos à hospedaria de imigrantes em São Paulo, ele observou que “saíram todos dos vagões na maior ordem e, depois de deixarem estes, não se viu no pavimento um só cuspo, uma casca de fruta”. Na hospedaria, os japoneses “têm feito as suas refeições sempre na melhor ordem e, apesar de os últimos a fazerem duas horas depois dos primeiros, sem um grito de gaiatice, um sinal de impaciência ou uma voz de protesto” (…) “surpreendeu a todos o estado de limpeza em que ficou o salão: nem uma ponta de cigarro, nem um cuspo, perfeito contraste com as cuspideiras e pontas de cigarro esmagadas com os pés de outros imigrantes”.

Muitos chegaram com pequenas bandeiras do Brasil e do Japão feitas de seda nas mãos, “trazidas de propósito para nos serem amáveis. Delicadeza fina, reveladora de uma educação apreciável”, observou Sobral. E todos se vestiam de modo simples mas à ocidental – o que na época foi algo inesperado. “A vestimenta européia conquista terreno no império do Sol Nascente. Foram os próprios imigrantes que compraram as suas roupas, adquiridas com seu dinheiro, e só trouxeram roupa limpa, nova, causando uma impressão agradável”.

Dois aspectos que chamaram a atenção de Sobral são curiosos. Ele observou que a bagagem dos japoneses “não parece bagagem de gente pobre, contrastando flagrantemente com os baús de folha e trouxas dos nossos operários”. Os japoneses eram imigrantes pobres, mas agiam com dignidade e educação. Trouxeram malas de vime, roupas e objetos simples, mas limpos ou novos. Pela descrição da bagagem no relatório, verifica-se que todos tinham poucas mas mesmas coisas: escova e pó dental, pente e navalha de barba (itens de higiene pessoal que na época muitos imigrantes europeus e até mesmo brasileiros não tinham); futons, makuras (travesseiros) de madeira e casacos (artigos têxteis caros para imigrantes); pequenas ferramentas, utensílios de cozinha e frasquinhos para shoyu. A maioria trouxe livros, tinta e papel (coisas que eram consideradas um “luxo” para trabalhadores braçais). De 781 pessoas, verificou-se que menos de 100, ou cerca de 13% delas, eram analfabetas – um baixo índice de analfabetismo na época. Estes eram os objetos que os japoneses, mesmo sendo pobres, se esforçaram para comprar e trazer do Japão, e que consideravam indispensáveis para começar uma vida longe da terra natal.

Outro foi o grau de confiança que os japoneses tinham em suas mulheres, “a ponto de, para não interromperem uma lição adventícia de português, lhes confiarem a troca de seu dinheiro japonês em moeda portuguesa”. Na época, os homens no ocidente não confiavam em suas esposas para lidar com assuntos relacionados a dinheiro, mas as japonesas faziam câmbio para seus maridos. Os imigrantes japoneses eram pobres, mas não eram miseráveis.

Sobral terminou seu longo relatório observando que “os empregados da alfândega declaram que nunca viram gente que tenha, com tanta ordem e com tanta calma, assistido à conferência de suas bagagens, e nem uma só vez foram apanhados em mentira. Se esta gente, que é todo trabalho, for neste o que é no asseio, (nunca veio pela imigração gente tão asseada), na ordem e na docilidade, a riqueza paulista terá no japonês um elemento de produção que nada deixará a desejar. A raça é muito diferente, mas não inferior. Não façamos, antes do tempo, juízos temerários a respeito da ação do japonês no trabalho nacional”. Este foi o testemunho de um brasileiro que, tanto como outros, jamais havia lidado um japonês, mas que por força da profissão foi o primeiro a conviver com os imigrantes pioneiros durante semanas.

É difícil precisar que impressões os japoneses tiveram ao chegar no Brasil, visto que os imigrantes do Kasato Maru não deixaram registros escritos sobre isso. É certo, entretanto, que os membros da primeira leva de imigrantes não tinham, em princípio, a intenção de se radicar de vez no Brasil. Trazidos pela empresa Teikoku Imin Kaisha (Companhia Imperial de Imigração), que firmou em 1907 contrato com a Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo para alocar 3 mil imigrantes até 1910 como empregados de várias fazendas de café no estado, os japoneses pretendiam ficar por cinco anos – período em que, de acordo com informações dadas pelos agentes de emigração no Japão, daria para ganhar o suficiente para retornar com economias. Os imigrantes pioneiros tinham a certeza de que iriam trabalhar muito, de que iriam ter que enfrentar dificuldades de comunicação devido a diferenças extremas de língua e costumes, mas a expectativa de poder retornar ao Japão com poupanças significativas os motivava a manter o espírito elevado. Mas os imigrantes logo descobririam que seria necessário mais do que a determinação samurai para sobreviver à realidade que os aguardava no Brasil.

MEIAS VERDADES, TOTAL SOFRIMENTO.

Apesar de um certo grau de participação de governos no estabelecimento de regras para enviar e receber imigrantes, o agenciamento dessa mão-de-obra era essencialmente um negócio feito por empresas privadas lá e cá, e a quantidade de empresas que existiam indica que a imigração era um negócio atraente e lucrativo. Para atrair o maior número de pessoas possível, as agências investiam em propagandas que nem sempre correspondiam à realidade. No caso do Brasil – país totalmente desconhecido e exótico para os japoneses – informações atraentes eram superavaliadas. O café era descrito como “a árvore que dá ouro”, e a produtividade da planta seria tamanha que os galhos envergavam com o peso dos frutos, e que bastava facilmente colhê-los com as mãos. Se tudo corresse do modo que as agências divulgavam, em um mês uma família com três membros trabalhando no cafezal receberiam o equivalente a 135 ienes no câmbio da época (uma quantia fantástica, considerando que o salário mensal de um policial no Japão era de 10 ienes).

Outras informações eram convenientemente vagas ou incompletas. O contratador brasileiro comprometia-se a “dar moradia” a cada família imigrante – mas no contrato de imigração não se especificavam as condições de tal moradia. A alimentação era por conta de cada família – mas não se explicava o exploratório “sistema do armazém” até que os imigrantes já estivessem na fazenda.

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